Adão Sergio do Nascimento Cassiano
Doutor em Direito do Estado, com ênfase em Direito Tributário, pela UFRGS, com pesquisa sobre Tributação e Direitos Fundamentais, Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Tributário da UFRGS e da Escola Superior da Magistratura da AJURIS/RS, ex-Fiscal de Tributos da Fazenda Estadual do RS, ex-Juiz do TARF/RS.
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. A norma jurídica do ISS. 3. A materialidade da hipótese de incidência do ISS. 4. O aspecto espacial da hipótese de incidência do ISS. 5. Conclusões.
1. Introdução
O presente estudo objetiva analisar a temática do aspecto temporal da norma tributária do ISS buscando a identificação de critérios para a definição e fixação do local em que deve haver a cobrança do tributo, especialmente nas hipóteses de prestações de serviços multilocais e fracionados, prestados em etapas. Na busca desse intento, parte-se da análise da noção de norma tributária e dos elementos que a compõem e, com o auxílio de uma teoria conceitual e de uma teoria da argumentação jurídica, propõe-se um critério jurídico para determinar o local da prestação dos serviços e a definição do respectivo ente tributante que deve receber o pagamento do tributo.
2. A Norma Jurídica Tributária do ISS
Ao pensar-se em tributação e em tributo, de imediato se visualiza a ideia do Estado praticando atividade potencialmente invasiva da liberdade e do patrimônio das pessoas[1], pois é pela exploração do patrimônio dos súditos, por meio da tributação, que o Estado obtém a sua principal fonte de receita para financiar o gasto público, decorrendo desse contexto a intuitiva necessidade de controle e limitação dessa atividade do Poder Público.
É em razão tanto dessa potencial invasividade, como dessa necessidade de controle e limitação, que a atividade de tributação é permitida e, ao mesmo tempo, contida pela Constituição Federal, por meio da instituição do Estado Democrático de Direito e dos direitos e liberdades fundamentais, os quais são garantidos por mecanismos também instituídos constitucionalmente.
Por ser uma atividade estatal invasiva da liberdade e do patrimônio das pessoas, é que a atividade de tributação foi elevada em nível constitucional no Brasil[2], sendo constitucionalmente configurada e conformada mediante a concessão e contenção do poder de tributar, através do estabelecimento da chamada competência tributária, que se caracteriza como outorga e limite do poder de tributar.
Assim, a atividade tributária do Estado é permitida e ao mesmo tempo limitada pela competência constitucional tributária, pelos princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito e pelos direitos fundamentais, os quais são garantidos mediante procedimento próprio perante o Poder Judiciário.
Nessa linha de raciocínio, a competência tributária é medida do poder de tributar, a qual é concedida aos entes federados[3] – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios – e, especialmente no que respeita aos impostos, como é o caso do ISS, a competência é taxativa e rígida, ficando apenas com a União a chamada competência residual, isto é, a possibilidade de ‘invenção’, mediante certos pressupostos constitucionais explícitos[4], de outros impostos além daqueles já previstos expressamente na Constituição.
Ao estabelecer a competência em matéria de impostos, como autorização e limitação de tributação aos entes federados, a Constituição Federal também estabelece, como decorrência lógica e imanente da autorização e da limitação, núcleos mínimos de significado que devem ser observados pelo legislador infraconstitucional.
Nesse sentido Humberto ÁVILA[5] fala em reserva constitucional material posta e pressuposta. Na reserva material posta, segundo o autor referido, a Constituição estabelece a reserva diretamente, utilizando termos expressos ou implícitos. Expressamente quando a Constituição faz referência a um termo já construído pela doutrina ou pela jurisprudência, como, por exemplo, ‘salário’. Implicitamente, quando a Constituição utiliza expressões similares que permitem ao intérprete, mediante operações conceituais, chegar ao conceito constitucional, como, por exemplo, o termo ‘renda’. Na reserva constitucional material pressuposta, segundo o mesmo autor aludido, a Constituição estabelece a reserva de maneira indireta, de modo que, na divisão que a Constituição faz das competências tributárias, ao atribuir a um ente federado o poder de tributar determinado fato, implicitamente atribui a outro ente federado a autorização para tributar fato diverso.
O preclaro autor citado conclui que “... é lícito afirmar que a Constituição pressupõe conceitos que não podem ser desprezados pelo legislador ordinário...”[6], acentuando que “... a instituição de um sistema rígido inserto numa República Federativa conduz a uma repartição de competências marcada exatamente por conceitos mínimos, na medida em que os mesmos fatos não poderão ser tributados por mais de uma pessoa política de direito interno. Por fim, é preciso registrar também que os princípios gerais incluídos no Sistema Tributário Nacional revelam uma índole claramente garantista, como é o princípio da segurança jurídica, construído indutivamente por meio das regras da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. Todas essas considerações revelam uma tendência conceitualizante, que afasta pura e simplesmente a argumentação casuísta de instituir tributos porque o Estado necessita do produto de sua arrecadação.”[7]
O contexto constitucional demonstra, assim, que não só o legislador infraconstitucional deve ater-se aos conceitos constitucionais, como também deve justificar a utilização do conceito, o que envolve não só uma teoria dos conceitos, como também uma teoria da argumentação jurídica. Somente com respeito aos núcleos mínimos de significação previstos na Constituição Federal, e mediante uma argumentação jurídica de fundamentabilidade, justificativa da instituição do tributo – e da consequente invasividade da liberdade e do patrimônio do cidadão – é que a lei não será arbitrária e atenderá ao princípio democrático e ao Estado de Direito.
E, se assim é para o legislador, com muito mais razão há de ser para o intérprete e aplicador, seja ele a autoridade administrativa, seja ele o Poder Judiciário, pois, em qualquer caso, esse intérprete e aplicador, não pode prescindir de uma teoria dos conceitos e de uma teoria da argumentação jurídica justificadora da fundamentabilidade das decisões respectivas.
É no fio desse pensamento que será analisado adiante o aspecto material e o aspecto espacial da hipótese de incidência da norma tributária do ISS.
Antes de abordar essa temática, é necessário relevar, entretanto, que a Constituição, embora estabeleça os conceitos ou núcleos mínimos de significado, ela por si só não cria os tributos, sendo necessária a edição de legislação inferior, em regra geral, lei ordinária do ente federado competente, para a criação dos tributos. A lei ordinária somente não é utilizada nessa finalidade quando a própria Constituição Federal exige a edição de lei complementar, para esse fim de instituição de tributos.
Como exemplo do que se acaba de afirmar, tanto no sentido de que a Constituição não cria tributos, como no sentido de que a lei complementar só é necessária quando a Constituição a exige, pode-se citar o caso do imposto sobre grandes fortunas (CF, art. 153, inciso VII), o qual, a despeito de estar previsto no Constituição, não pode ser cobrado porque não foi instituído por lei complementar, a qual é expressamente exigida pela Constituição para a criação do referido tributo.
O exposto, por outro turno, demonstra que não se pode cobrar tributo somente com a Constituição Federal. Também não é possível a cobrança de tributo somente com a lei ordinária ou somente com a lei complementar, prescindindo-se da Constituição. Além disso, também não é possível cobrar tributo somente com a Constituição, com a lei ordinária ou com a lei complementar, prescindindo-se do decreto regulamentar ou de outros atos normativos subalternos, os quais são os veículos normativos que especificam detalhes como os modos pelos quais o dever tributário pode ser regularmente cumprido, seja esclarecendo como cumprir obrigações acessórias, seja explicitando como pode ser feito o recolhimento do tributo: mediante guia, no caixa da instituição financeira, na repartição fiscal, etc.
Tudo isso demonstra que o intérprete e aplicador necessita de todo o sistema jurídico, não só para determinar especificamente o fato gerador e a obrigação tributária, mas também para poder cumprir adequadamente o seu dever tributário, com o devido recolhimento do tributo, livrando-se, assim, do dever tributário pelo seu regular cumprimento.
Na verdade o que importa para as pessoas em geral, sujeitos passivos de tributos, desde o mais modesto ao mais rico empresário, é saber se determinado fato de conduta tem que pagar ou não tributo e, sendo devido o tributo, o que deve fazer para se livrar regularmente do dever tributário.
E a categoria jurídica que reúne e descreve todos os elementos, necessários tanto à caracterização do fato gerador, como à configuração da obrigação tributária e ao cumprimento regular do dever tributário, é a norma tributária que, como é intuitivo, pelo que foi exposto, não se confunde com a Constituição, nem com a lei, nem com o decreto e nem com um ou outro artigo de um diploma normativo qualquer, de modo que a norma é deduzida do sistema jurídico pelo intérprete e aplicador[8], pois, para se descobrir a norma jurídica tributária, como visto, não basta apenas a Constituição, ou a lei complementar, nem somente a lei ordinária, mas é necessário considerar todo o sistema, já que a finalidade da norma tributária, em última instância é, para o Estado, o pagamento do tributo devido, e, para o sujeito passivo, a obtenção da quitação[9].
Em tais circunstâncias, as normas não se confundem ou não são a mesma coisa que os textos normativos, pois a norma é o significado do texto normativo. O significado é descoberto ou reconstruído pelo intérprete e aplicador a partir do texto normativo, por isso autores como Riccardo GUASTINI chamam de disposição o enunciado pertencente a uma fonte do direito, como os textos normativos, e de norma o conteúdo de sentido desse enunciado do texto normativo[10].
Como acentua Humberto ÁVILA[11] “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos.”
A norma, nesse sentido, possui uma estrutura lógica, composta de duas partes, a prótase e a apódose[12], em que, na primeira, estão descritos os fatos e, na segunda, está descrita uma consequência jurídica, que no mais das vezes pode configurar um dever jurídico, como normalmente ocorre em tema tributário.
Na verdade, toda norma jurídica, não só a norma tributária, possui a mesma estrutura lógica[13], formada por uma hipótese de incidência e por uma conseqüência jurídica.
Assim, neste estudo, em lugar dos termos prótase e apódose, usar-se-á, respectivamente, as expressões hipótese de incidência e conseqüência jurídica, adotando-se aqui não só a terminologia, mas também a noção e a estrutura de norma jurídica tributária proposta por Sacha Calmon NAVARRO COELHO[14].
Segundo o autor por último referido, a hipótese de incidência da norma tributária descreve o fato tributável (aspecto material), com as coordenadas de tempo (aspecto temporal) e lugar (aspecto espacial), sendo que o fato tributável é referido a pessoas nele envolvidas (aspecto pessoal). Na conseqüência jurídica da norma está descrito o conteúdo do dever jurídico ou da obrigação tributária, envolvendo o sujeito ativo, o sujeito passivo, a base de cálculo, a alíquota, o valor a pagar e a definição de quando, onde e como pagar o valor devido.
Interessa ressaltar, para os fins deste estudo, a circunstância de que o conceito de hipótese de incidência (fato gerador abstrato) é definido não só pela materialidade do fato, mas por esta em conjunto com os três outros aspectos relativos à temporalidade, à espacialidade e à pessoalidade.
Nesse sentido, o saudoso Alfredo Augusto BECKER, a partir da doutrina de Pontes de Miranda, com a precisão científica que sempre o caracterizou, afirma que a hipótese de incidência consiste num ato ou fato ou estado de fato que constitui o núcleo da hipótese, adjetivado por elementos que o ligam a uma ou mais pessoas, o qual acontece num determinado tempo e lugar, acentuando que o acontecimento do núcleo e elementos adjetivos somente realizarão a hipótese de incidência se tiverem acontecido no tempo e lugar predeterminados pela regra jurídica[15].
Assim, a hipótese de incidência, conceitualmente, depende da materialidade, ou do núcleo, como diria BECKER, e também dos aspectos pessoal, temporal e material para sua constituição e realização.
Daí a conexão desse tema da norma tributária com a teoria dos conceitos.
E releva ainda acentuar, para os fins deste estudo, precisamente, a questão da espacialidade como um dos traços componentes e definidores da própria hipótese de incidência do ISS, na medida em que o fato não se configura na sua inteireza jurídico-normativa – e, nessa medida, será um fato irrelevante para efeito de ISS – se não estiver conjugado com uma coordenada de espaço.
Portanto, além dos aspectos material, pessoal e temporal, o aspecto espacial também compõe o conceito de hipótese de incidência da norma tributária de qualquer tributo e, assim, também da norma tributária do ISS.
3. A Materialidade da Hipótese de Incidência do ISS
A temática da competência constitucional tributária tem direta influência nos contornos da hipótese de incidência da norma tributária do ISS.
A adequada análise da competência tributária aponta no sentido de que a visualização da matéria deve ser feita do ponto de vista sistêmico, observando-se tanto aquilo que positivamente está constitucionalmente definido como sendo de competência de determinado ente federado, quanto aquilo que negativamente não pertence à competência desse mesmo ente, isto é, a competência de um ente federado deve ser vista diante da competência positiva dos outros entes federados.
Em termos mais simples, a competência que foi outorgada a uma esfera federativa, em tema de impostos, não foi outorgada à esfera federativa diversa, e isto deve ser visualizado pelo intérprete e aplicador sistemicamente, examinando-se a competência tributária tanto positiva como negativamente.
Como se pode observar pelo dispositivo constitucional que prevê a competência para instituição do ISS (CF, art. 156, III), ali está dito que compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza não compreendidos no art. 155, inciso II, da Constituição Federal, definidos em lei complementar. Também dispõe a Constituição Federal que cabe à lei complementar, entre outras funções, dispor sobre os conflitos de competência tributária e estabelecer normas gerais em matéria tributária, sendo que, em relação aos impostos, incumbe à lei complementar definir os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes (CF, art. 146, I e III, ‘a’).
Precisamente aí começam os parâmetros para composição da norma tributária do ISS.
O saudoso Aliomar BALEEIRO[16], já ao seu tempo e há muito tempo, assentou lição que não deve jamais ser esquecida, no sentido de que “... a lei complementar não pode ir além do que já está dito, expressa ou implicitamente, na Constituição. Esta será violada por lei complementar que regule diversamente o que ela regulou. É caso de inconstitucionalidade da lei complementar. Complementa, mas não corrige nem inova.” Em tais circunstâncias, não pode a lei infraconstitucional redefinir os conceitos, termos e expressões constitucionais, devendo, portanto, respeitar o conteúdo mínimo de significado dos dizeres constitucionais, sob pena de não o fazendo, alterar a própria Constituição.
Portanto, existem limites bastante precisos para a lei complementar, tanto na questão da solução de eventuais conflitos de competência, quanto na definição dos fatos geradores, das bases de cálculo e dos contribuintes dos impostos, como é o caso do ISS.
Logo, a lei complementar – e também a lei ordinária criadora do tributo – deve ater-se aos núcleos mínimos de significado constantes das disposições de competência estabelecidas na Constituição Federal, não podendo a legislação infraconstitucional desbordar desses conceitos, pois a interpretação das disposições constitucionais sobre competência tributária, como antes referido, deve observar uma teoria conceitual e uma teoria da argumentação jurídica respeitosa do princípio democrático e do ordenamento jurídico vigente[17].
Assim, impõe-se notar, em primeiro lugar, que os serviços de qualquer natureza, tributáveis pelos Municípios, são aqueles que não são tributáveis por outros entes federados, como o Estado, por exemplo, a quem a Constituição reserva a tributação dos serviços de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação, de modo que, embora o Município possa tributar serviços de qualquer natureza, é certo que não pode tributar aqueles serviços que foram reservados à competência tributária dos Estados.
O núcleo do aspecto material da hipótese de incidência do ISS é a ‘prestação de serviços’ de qualquer natureza, a qual envolve uma conduta humana traduzida num fazer que representa a realização de uma atividade que pode envolver ou não emprego de materiais.
Essa prestação de serviços deve, portanto, ser uma atividade-fim e, havendo emprego de materiais, não pode caracterizar atividade de industrialização, isto é, atividade que modifique a natureza ou a finalidade ou que aperfeiçoe o produto para consumo (CTN, art. 46, par. único), de modo a caracterizar produção em série, pois, em tal circunstância, não se configura prestação de serviço como atividade-fim, já que o serviço incorpora-se no produto e se caracteriza como atividade-meio, daí resultando um produto industrializado sujeito à incidência do IPI, imposto de competência da União, com o que fica afastada a competência tributária municipal.
O conceito de prestação de serviço de qualquer natureza, como hipótese de incidência do ISS, não pode prescindir do aspecto temporal, que diz como o momento em que se considera ocorrido o fato material da prestação, assim como também não pode faltar o aspecto pessoal, que diz com as pessoas envolvidas no fato da prestação e, por fim – o que mais importa para este estudo – não pode dispensar o aspecto espacial, isto é, as coordenadas de lugar em que o fato da prestação ocorre, pois, se abstraído qualquer um dos aspectos referidos, em particular o espacial, a hipótese de incidência não estará configurada, e o fato ocorrido não será passível de tributação pelo ISS como prestação de serviço.
A questão aí, como se vê, e como já foi referido no item precedente, é conceitual, sendo que o aspecto espacial – como os demais aspectos da hipótese de incidência da norma – faz parte do conceito de hipótese de incidência do ISS.
E o conceito de hipótese de incidência, como visto, envolve não só o aspecto material ‘prestação de serviço’, como seu núcleo, mas também o aspecto pessoal, o temporal e especialmente o espacial. Caso falte algum desses elementos, o conceito não estará completo e não haverá incidência da norma sobre o fato, seja por deficiência conceitual normativa decorrente da formulação normativa, seja por insuficiência do fato do mundo físico que não se afeiçoa ao conceito normativo[18].
A competência tributária corrobora a autonomia municipal que decorre do princípio federativo a que se referiu no início, de modo que, nesse sentido, a competência, além de discriminar a materialidade do fato tributável, também define a questão da territorialidade da ocorrência do fato, a qual se traduz no aspecto espacial da hipótese de incidência da norma do ISS.
Assim, observa-se que o aspecto espacial – como os demais aspectos da hipótese de incidência – decorre diretamente da disposição constitucional de competência, pois a Constituição, ao atribuir a competência ao município, atribui poder de tributar a todo e qualquer Município no âmbito de seu território, de modo que não pode um Município pretender tributar fato que ocorreu no território de outro.
Portanto, o Município competente para exigir o ISS só pode ser aquele em cujo território ocorreu o fato gerador, isto é, onde ocorreu a prestação do serviço, não podendo a lei complementar, mesmo a pretexto de definir o fato gerador ou de dirimir conflitos tributários, alterar essa realidade, pois, se assim o fizer, estará alterando a própria Constituição e, então, chegar-se-á à absurda conclusão de que não será mais necessária a Constituição, devendo-se deixar que a lei complementar tudo possa fazer, o que, evidentemente, no Estado Constitucional e Democrático de Direito não pode jamais ser admitido.
Mas a questão, embora pareça, não é tão simples assim, pois a riqueza fática da vida demonstra que nem sempre é fácil determinar se a prestação de serviço ocorreu num ou noutro Município, já que há serviços que podem ser chamados de multilocais e fracionados, que pode ser realizados por etapas, tema que será tratado no item seguinte.
4. O Aspecto Espacial da Hipótese de Incidência do ISS
No atinente ao aspecto espacial da hipótese de incidência da norma tributária do ISS, os eventuais conflitos tributários que podem surgir são entre Municípios e especialmente nos casos em que determinado prestador de serviço é estabelecido ou tem domicílio no território de determinado Município e presta serviço no território de outro ou de outros Municípios.
É nesse contexto que surgem as hipóteses, não infreqüentes, do que se poderia chamar de serviços multilocais e fracionados ou realizados por etapas, em que o estabelecimento ou domicílio do prestador está num Município, o tomador do serviço está localizado em outro Município e o serviço é prestado até mesmo num terceiro Município, mas com realização parcial ou de etapas nos mesmos ou em outros Municípios.
Nessas hipóteses, para facilitar a compreensão do tema, poder-se-iam imaginar as seguintes situações: a) um advogado de Porto Alegre é contratado por um cliente de Florianópolis para prestar o serviço em Brasília, nos Tribunais Superiores; b) os serviços de internet relativos à hospedagem de sites, em que o tomador do serviço pode estar em Porto Alegre, o prestador em Recife e o meio físico de hospedagem das páginas em São Paulo; c) os serviços de perícia em que o perito está estabelecido num Município, realiza a coleta de dados em outro Município, conclui o laudo no Município em que possui estabelecimento, mas o entrega (cumpre a obrigação) no Foro de um terceiro Município. Esses exemplos e situações, de serviços multilocais, fracionados e em etapas, poderiam ser multiplicados indefinidamente.
A questão então deve ser analisada e solucionada, mediante um critério jurídico, nos quadrantes da competência constitucional e da teoria da norma tributária, tudo visualizado mediante uma teoria conceitual e uma teoria da argumentação jurídica.
A competência constitucional tributária, como já referido, envolve – além dos aspectos pessoal e temporal – tanto a materialidade do fato tributado como a territorialidade da sua ocorrência, sendo que ambas são elementares da hipótese de incidência do ISS.
Em tais circunstâncias, o aspecto espacial somente pode ser alterado, seja por lei complementar, seja por lei ordinária, dentro do espectro da competência constitucional que, a par de determinar a materialidade do fato passível de tributação, determina também a territorialidade em que o sucesso há de acontecer.
Ademais, a conformação por legislação inferior – complementar ou ordinária – tem que poder ser reconduzida aos quadrantes constitucionais conceituais de competência, com justificação de fundamentabilidade sustentada por uma teoria conceitual e por uma teoria da argumentação jurídica, tudo de forma atenciosa com o princípio democrático e com o Direito vigente positivado.
A lei complementar, assim como a lei ordinária, não pode alterar os núcleos mínimos de significado utilizados pela Constituição, pois, do contrário, como já aludido, não seria necessária a Constituição e bastaria simplesmente a lei inferior.
A liberdade de configuração do legislador inferior deve respeitar, pois, os núcleos mínimos de significado postos na Constituição.
Assim, há de se entender, a teor do art. 156, inciso III, da Constituição Federal, que não são os serviços de qualquer natureza em si mesmos que são objeto de tributação, mas sim a ‘prestação’, como ato de conduta humana que é praticado pelo prestador.
E essa prestação somente pode ocorrer por alguma forma jurídica, já que quando se estuda e se aplica o Direito não se está estudando e aplicando economia, matemática ou outra ciência, embora o Direito seja aberto e juridicize conceitos de outras ciências, sendo exatamente aí que esses conceitos de outras ciências se tornam jurídicos, precisamente por que, encampados pelo Direito, juridicizam-se.
Em tais circunstâncias, a despeito de a lei complementar pretender dar ao ISS uma certa neutralidade jurídica (LC nº 116/2003, § 4º do art. 1º), isso não significa que esse tributo possa incidir sobre uma realidade factícia bruta e pura, como uma simples realidade econômica, que corresponda à fórmula jurídica nenhuma.
Não haverá prestação de serviço se não houver um contrato: portanto, uma forma ou fórmula jurídica. Mesmo que se trate de um contrato gratuito, como, por exemplo, o de doação, a prestação do serviço será, ainda assim, decorrente de um contrato. E isto porque a prestação do serviço poderá ser realizada por qualquer fórmula jurídica permitida no ordenamento. Mas a fórmula jurídica sempre estará presente. E a fórmula jurídica é definida pela lei civil.
A lei tributária não pode alterar os conceitos de direito civil, especialmente quando eles sejam utilizados pelo legislador constitucional para definir ou limitar competências (CTN, art. 110).
Ora, quando a Constituição refere à ‘prestação’ de serviço, está ela, elíptica ou implicitamente, não só referindo a um fazer, mas também aludindo a uma fórmula jurídica pela qual a ‘prestação’ há de realizar-se.
Logo, em tais circunstâncias, não há como se deixar de concluir que a Constituição utilizou, elíptica ou implicitamente, conceitos de Direito Civil para definir ou limitar competência tributária.
E já se sabe pelo que foi afirmado anteriormente, que a lei inferior não pode alterar os conceitos constitucionais, sob pena de se admitir o absurdo de alteração da própria Constituição pela legislação inferior.
Em tal contexto, o art. 110 do CTN é simplesmente expletivo, pois o alcance dos conceitos utilizados pela Constituição há de ser pesquisado, como antes referido, no âmbito de uma teoria dos conceitos e de uma argumentação jurídica respeitosa do princípio democrático e atenciosa com o Direito vigente, tudo de acordo com o estágio presente da doutrina, da jurisprudência, da legislação infraconstitucional e do costume.
Assim, se a Constituição não definiu, ela própria, o sentido em que utilizou a expressão ‘prestação de serviços’, então é porque está permitindo a encampação do conceito jurídico vigente ao tempo em que se dá a aplicação da disposição constitucional, sendo que esse conceito deve ser buscado no estágio atual da legislação infraconstitucional, da doutrina, da jurisprudência e do costume, mediante uma teoria da argumentação e uma teoria da interpretação jurídica.
A Constituição Federal, a par de ser o diploma normativo fundamental, é, também, antes de tudo, real e concreta, e deve ser interpretada e entendida hic et nunc, pois as mesmas expressões por ela utilizadas podem, em épocas diferentes, v. g., no futuro, ter outro sentido e expressar outro conceito, de acordo com a evolução jurídica e histórica, porque a doutrina, a jurisprudência, a legislação infraconstitucional e o costume evoluem e se adaptam aos novos tempos, como decorrência natural da evolução histórico-social de um povo.
Nem se diga que a expressão ‘prestação de serviços’ seria um conceito institucional – como até já se pretendeu fazer a propósito de outro tema, no julgamento no STF relativo à COFINS[19] – que poderia ser configurado pelo legislador infraconstitucional, no sentido de que não podendo ser perpetuado um sentido incorporado a partir da doutrina ou da legislação inferior, porque isso, além de interpretar a Constituição com base na lei inferior, tornaria o conceito imutável e de acordo com uma posição legislativa ou doutrinária dominante em determinada época.
Ora, tomar o Direito pré-constitucional ou infraconstitucional como base para averiguar o sentido de um conceito não é a mesma coisa que interpretar a Constituição com base na lei inferior e nem adotar um conceito de uma determinada legislatura ordinária em certa época, assim como também não é o mesmo que adotar certo entendimento doutrinário de certo tempo ou até mesmo um entendimento jurisprudencial de certa época.
É certo que a Constituição, como aludido, é algo real e concreto e deve ser interpretada aqui e agora – como, aliás, referiu o Ministro Eros Grau em seu voto no julgamento acima mencionado – e por isso as expressões usadas pela Constituição devem ser entendidas em seu sentido atual, ou no sentido do momento a que se refere o caso que está em exame, o que demonstra que, se tal sentido for fixado no ato de interpretação e aplicação do Direito, não é agora, e não será no futuro, um sentido imutável e perpétuo, mesmo porque a mesma expressão constitucional, numa época futura, e considerando as mesmas variáveis históricas (legislação infraconstitucional, doutrina, jurisprudência e costume), diante da realidade daquele futuro, poderá ter outro sentido, que também será buscado no Direito pré-constitucional e infraconstitucional, na doutrina, na jurisprudência e no costume que lhe antecederam. É por isso que há necessidade de uma teoria conceitual e de uma teoria da argumentação jurídica.
É que, se a busca do sentido não houvesse de ocorrer assim, onde se buscariam os ‘conceitos vigentes’, isto é, o sentido das expressões constitucionais concretas aqui e agora, senão exatamente no material legislativo, doutrinário, jurisprudencial e costumeiro do Direito, inclusive na sua perspectiva de evolução histórica até o sentido presente?
Não é possível certamente, no estágio atual de desenvolvimento do material jurídico, entender ‘prestação de serviços’ com a visão de que seria algo simplesmente factício, puramente econômico, despregado e independente de qualquer formulação jurídica, especialmente quando não se tem dúvida de que as prestações de serviços sempre se dão mediante contratos verbais ou escritos ajustados entre as partes que configuram obrigações de fazer.
A jurisprudência do STF, como se pode ver pelo acima exposto, em relação ao RE 390840, e como se pode observar pela leitura do RE 116121[20], vem evoluindo e adotando conceitos jurídicos – como não poderia ser diferente – ao invés de adotar equivocadamente conceitos puramente econômicos e factícios para interpretar a Constituição e a legislação inferior. No primeiro desses casos deu-se um entendimento jurídico para o conceito de ‘faturamento’ e, no segundo, a partir do conceito do Direito Civil sobre ‘locação’ entendeu-se que ela não é e não configura ‘prestação de serviços’.
Aliás, o último precedente mencionado demonstra muito bem a questão da evolução do sentido dos conceitos constitucionais, pois se observa que, em precedentes anteriores, o STF interpretava a expressão constitucional ‘serviços’ como incluindo também a locação de coisas móveis, exatamente por atribuir a essa expressão constitucional apenas um conteúdo econômico, em detrimento do sentido jurídico que é dado, especialmente no Direito Civil, à questão da obrigação de fazer e ao fato de a locação de coisa, no sentido civilista, ser obrigação de dar e não de fazer.
Especialmente pelos votos dos Ministros Octávio Gallotti, Carlos Velloso e Nelson Jobim, os quais seguiram a jurisprudência antiga da Corte, observa-se que, nos precedentes antigos, foi dada relevância ao aspecto econômico, sem qualquer consideração com relação à questão da linguagem e à teoria conceitual. Todavia, a partir do voto do Ministro Marco Aurélio, que iniciou a divergência e foi acompanhado pelos Ministros Celso de Mello, Moreira Alves, Sepúlveda Pertence e Sydney Sanches, passou-se ao entendimento de que a realidade conceitual jurídica deve sobrepor-se à realidade conceitual econômica, de modo que o conceito de prestação de serviço deve ser entendido na linha civilista da obrigação de prestar ou fazer, sendo que a locação de coisas envolve uma obrigação de dar, que não se confunde e nem envolve prestação de serviços, ou, se envolve, o serviço, na hipótese, não é a atividade-fim, mas simples atividade-meio.
É importante observar-se que a composição do Tribunal no RE 116121 é diferente, e mais antiga, do que aquela do RE 390840.
Portanto, ambos os precedentes são uma boa amostra de que o órgão máximo do Judiciário brasileiro está começando a percorrer caminhos mais científicos, no sentido de utilizar uma teoria dos conceitos e uma teoria da argumentação jurídica, o que deve ser reconhecido como uma premissa alentadora, especialmente porque, com decisões justificadamente fundamentadas, melhor se atende ao princípio democrático que se reconduz ao Estado de Direito.
Nesses dois precedentes pode-se dizer que ficou caracterizada a situação de que a lei inferior não pode inovar ou alargar os conceitos utilizados pela Constituição.
Em tais circunstâncias, nos casos em que não se pode determinar onde ocorreu a ‘prestação do serviço’, o critério ‘jurídico’ – que é o que deve prevalecer – é que determinará o local da cobrança do ISS porque esse critério definirá o local da prestação. E nessa hipótese, a teoria conceitual e a teoria da argumentação jurídica apontam no sentido de que se adotem as disposições da lei civil que regula os negócios jurídicos, realidades subjacentes às prestações de serviços como materialidade do ISS.
Relembre-se que o aspecto espacial, além de decorrer da própria formulação constitucional da norma de competência tributária, também faz parte do conceito da hipótese de incidência do ISS. E os núcleos mínimos de significado utilizados pelo legislador constitucional não podem ser alterados pela legislação inferior, sob pena de se alterar a própria Constituição e, além disso, como dispõe expletivamente o art. 110 do CTN, os conceitos adotados pela Constituição para definir e limitar competências não podem ser alterados pela legislação tributária inferior.
Nesses termos, adotado, pelas razões expostas, o critério da lei civil, o ‘local da prestação do serviço’, referido na lei complementar, independentemente do que a lei complementar diga, deve ser entendido como o local da celebração do contrato, definido no art. 435 do CCB/2003[21], o qual é determinado pelo local em que foi proposto o ajuste.
Assim, o problema desloca-se para a questão de saber em que local foi feita a proposta, pois o contrato será considerado celebrado nesse local, e esse local será considerado o lugar da ocorrência do fato gerador, sendo o tributo devido ao Município respectivo.
O local da proposta não oferece maiores dificuldades.
Segundo a própria Lei Civil, a proposta pode ocorrer entre presentes ou entre ausentes.
Considera-se entre presentes a proposta feita por telefone ou por meio semelhante (CCB, art. 428, I). Outro meio semelhante certamente será aquele em que haja diálogo direto e imediato entre as partes, como os sistemas tipo Skype e outros em que a comunicação é instantânea e simultânea, como nas conversas on-line.
As propostas feitas por meio de correio eletrônico (e-mail) são semelhantes às correspondências postais em geral, e por isso tais propostas devem ser consideradas entre ausentes (CCB, art. 434), de modo que o ajuste formado por meio de correio eletrônico deve ser considerado como contrato por correspondência ou epistolar.
O local da proposta será então o local onde se encontra o proponente no momento da proposta, que pode ou não ser o mesmo local de seu estabelecimento ou de seu domicílio.
Importa referir também que a oferta ao público equivale à proposta quando encerra os requisitos essenciais do contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos (CCB/2002, art. 429).
Em tais circunstâncias, os serviços que são ofertados pela rede mundial de computadores, por exemplo, têm como local de sua prestação o local em que são ofertados, que só pode ser o lugar onde se encontra o prestador e não onde se encontra o meio físico-eletrônico que suporta a página eletrônica que oferece o serviço.
E assim é inclusive porque o tomador do serviço, que no mais das vezes será considerado um consumidor[22], deverá saber e identificar quem é e onde se encontra o prestador do serviço – e não quem hospeda a página – para o caso de necessidade de resolução de eventuais pendências decorrentes da relação contratual.
Além disso, se não houver indicações na própria página quanto ao fornecedor, então é porque a própria entidade que hospeda a página assume a responsabilidade pela prestação do serviço, e, nesse sentido, ela será tida como a própria prestadora, inclusive nos casos de eventual responsabilidade contratual. Nesta última hipótese, o local da prestação será aquele em que se encontra a entidade que hospeda a página.
Assim também nos casos do advogado e do perito, antes referidos. O serviço será considerado prestado no local em que houve a celebração do contrato que é precisamente o local onde ocorreu a proposta, independentemente de onde o serviço, ou etapas dele, foram executadas, e independentemente do local em que foi cumprida a obrigação, e. g., com a entrega do laudo.
Dir-se-á, em tal contexto, que as partes podem variar, segundo sua vontade, o local da proposta.
Todavia, a vontade declarada pelas partes só não deve e não pode ser considerada se houver fraude ou simulação, o que deve ser provado pelo Fisco, que, nesses casos, pode desconsiderar, observado o devido processo legal, a fórmula jurídica utilizada pelas partes, para adotar, ele Fisco, a fórmula jurídica adequada à situação fática provada (CTN, arts. 116, par. único, 118 e 148; LC nº 116/2003, art. 1º, § 4º), sendo certo que, salvo disposição legal expressa da lei tributária, toda conduta ilícita para o Direito Privado será ilícita para o Direito Tributário[23].
Não há dúvida de que, observado o devido processo legal, o Fisco pode desconsiderar a fórmula jurídica adotada se ela for fraudulenta ou simulada. E se o ajuste de vontades for fraudulento ou simulado, em tema de ‘prestação de serviços’ haverá sempre outra fórmula jurídica à qual o ajuste entre as partes pode afeiçoar-se. O fato é que, como dito, o que é nulo no Direito Civil é nulo também no Direito Tributário e a situação fática será tributada segundo a fórmula jurídica a que ela efetivamente corresponde.
E isto porque as normas jurídicas, como já referido no início deste estudo, e especialmente a disposição sobre o local da prestação do serviço[24], visam à garantia e à segurança jurídica dos cidadãos-contribuintes, cabendo ao Fisco o combate à fraude e à simulação. Ao Judiciário cabe dizer o direito e fazer justiça do caso concreto, sem prestigiar a simulação e a fraude, mas sem interpretação e aplicação do Direito em função da fraude e da simulação em relação aos contribuintes cumpridores de seus deveres e obrigações, como se estes fossem absolutamente iguais aos simuladores e fraudadores.
Ademais disso, muito menos interesses arrecadatórios podem ser invocados para modificar o local da ocorrência do fato gerador, especialmente quando isso implica violar a Constituição. Exemplos disso são os casos de locação do item 3.04 e do pedágio do item 22.01 – os quais sequer configuram prestações de serviço, tema que aqui não cabe tratar – em que a lei, buscando atender simples interesses arrecadatórios, pretendeu fazer uma repartição da arrecadação tributária modificando os locais de ocorrência dos pretensos fatos geradores, violando abertamente a Constituição.
5. Conclusões
O exposto ao longo do texto permite chegar às seguintes conclusões:
1. A tributação é atividade do Estado potencialmente invasiva do patrimônio e da liberdade das pessoas. A relevância dessa questão determinou a constitucionalização da atividade tributária do Estado. Em razão disso, o poder de tributar é concedido e ao mesmo tempo limitado pela Constituição, por meio da competência tributária, a qual vem expressada por conceitos jurídicos de significado mínimo, que devem ser respeitados pelo legislador e pelo intérprete e aplicador.
2. Tanto o legislador infraconstitucional, como o intérprete e aplicador, devem não só se ater aos conceitos constitucionais, como também devem justificar a utilização do conceito, o que envolve não só uma teoria dos conceitos, como também uma teoria da argumentação jurídica, tudo de modo respeitoso aos núcleos mínimos de significação previstos na Constituição Federal.
3. A instituição de tributo e a sua respectiva cobrança, exigem uma justificativa de fundamentabilidade que deve ser expressada por uma teoria dos conceitos jurídicos e por uma teoria da argumentação jurídica, para que a atividade de tributação não seja arbitrária e atenda ao princípio democrático e ao Estado de Direito.
4. A exigência do tributo não pode ser feita somente com base na Constituição, porque ela não cria tributos; nem somente com base na lei infraconstitucional, necessitando-se de todo o sistema jurídico, de modo a determinar-se especificamente o fato gerador, a obrigação tributária e o respectivo modo de cumprimento do dever tributário.
5. A categoria jurídica que descreve os elementos necessários tanto à caracterização do fato gerador, à configuração da obrigação tributária e ao cumprimento do dever tributário, é a norma tributária, a qual não se confunde com a Constituição, nem com a lei, nem com o decreto regulamentar. A norma é o significado dos textos normativos, sendo esse significado descoberto ou reconstruído pelo intérprete e aplicador a partir do texto normativo.
6. A norma jurídica tributária possui uma estrutura lógica formada por uma hipótese de incidência e por uma consequência jurídica. Na hipótese estão descritos os aspectos material, temporal, pessoal e espacial. Na consequência jurídica estão descritos os elementos do dever jurídico ou obrigação tributária, como o sujeito ativo, o sujeito passivo, a base de cálculo, a alíquota, o valor a pagar, a data do pagamento e o lugar do pagamento.
7. No âmbito dos limites deste estudo, são particularmente relevantes os aspectos material e espacial, como elementos integrantes do conceito de hipótese de incidência, para determinação das coordenadas de lugar da ocorrência do fato gerador e definição do Município competente para a exigência do ISS.
8. A partir dos núcleos de significado presentes na disposição constitucional de competência tributária dos Municípios, em tema de ISS, e com base numa teoria dos conceitos jurídicos e numa teoria da argumentação jurídica, pode-se concluir que o núcleo do aspecto material da hipótese de incidência do ISS é a ‘prestação de serviços’ de qualquer natureza, a qual envolve uma conduta humana traduzida num fazer. O conceito de hipótese de incidência, em tema de ISS, envolve o aspecto material ‘prestação de serviço’, como núcleo da hipótese, e o aspecto espacial, que vai definir o lugar da ocorrência do fato gerador e, por consequência, o sujeito ativo competente para exigir o tributo.
9. O aspecto espacial, assim como o material, decorre diretamente da disposição constitucional de competência, pois, a Constituição, ao atribuir a competência ao município, atribui poder de tributar a todo e qualquer Município no âmbito de seu território, de modo que não pode um Município pretender tributar fato que ocorreu no território de outro.
10. É nesse ponto que se apresenta a dificuldade criada com os chamados serviços multilocais e fracionados, que podem ser realizados por etapas, em que o estabelecimento ou domicílio do prestador está num Município, o tomador do serviço está localizado em outro Município e o serviço é prestado num terceiro Município, mas com realização parcial ou de etapas nos mesmos ou em outros Municípios. Por isso, a questão tem que ser analisada e solucionada, mediante um critério jurídico, de acordo com a competência constitucional e com uma teoria da norma tributária, mediante uma teoria conceitual e uma teoria da argumentação jurídica.
11. A competência constitucional tributária envolve, além dos aspectos pessoal e temporal, a materialidade do fato tributado e a territorialidade da sua ocorrência, sendo, ambas, elementares da hipótese de incidência do ISS. A conformação por legislação infraconstitucional tem como limites os quadrantes constitucionais conceituais de competência, com justificação de fundamentabilidade sustentada por uma teoria conceitual e por uma teoria da argumentação jurídica, tudo de forma atenciosa com o princípio democrático. A liberdade de configuração do legislador inferior deve respeitar os núcleos mínimos de significado postos na Constituição.
12. O aspecto espacial da norma do ISS somente pode ser alterado, seja por lei complementar, seja por lei ordinária, dentro do espectro conceitual da competência constitucional que, a par de determinar a materialidade do fato passível de tributação, determina especialmente a territorialidade em que aludido fato acontece. Se a legislação infraconstitucional pudesse alterar o aspecto espacial para além dos limites dos termos e expressões constitucionais, a Constituição seria dispensável, o que não pode ser admitido.
13. A neutralidade jurídica pretendida pela lei complementar do ISS não significa que o tributo possa incidir sobre uma realidade factícia bruta e pura, como uma simples realidade econômica, que corresponda à fórmula jurídica nenhuma. Não haverá prestação de serviço se não houver um contrato, que se expressa numa fórmula jurídica, a qual é definida pela lei civil. A lei tributária não pode alterar os conceitos de direito civil, especialmente quando utilizados pela Constituição para definir ou limitar competências, sendo esse o caso dos negócios jurídicos expressivos de prestações de serviços configuradoras do fato gerador do ISS.
14. Nos casos em que não se pode determinar onde ocorreu a ‘prestação do serviço’, o critério jurídico é que determina o local da cobrança do ISS, porque esse critério define o local da prestação. Nessa hipótese, a teoria conceitual e a teoria da argumentação jurídica apontam no sentido de que se adotem as disposições da lei civil que regula os negócios jurídicos, realidades subjacentes às prestações de serviços como materialidade do ISS.
15. Adotado o critério da lei civil, o ‘local da prestação do serviço’, referido na lei complementar, independentemente do que a lei complementar estabeleça, deve ser entendido como o local da celebração do contrato, definido no art. 435 do CCB/2003, o qual é determinado pelo local em que foi proposto o ajuste. O local da proposta é o local onde se encontra o proponente no momento da proposta, que pode ou não ser o mesmo local de seu estabelecimento ou de seu domicílio.
16. O serviço é considerado prestado no local em que houve a celebração do contrato, que é o local onde ocorreu a proposta, independentemente de onde o serviço, ou etapas dele, foram executadas, e independentemente do local em que foi cumprida a obrigação.
17. A vontade declarada pelas partes só não deve e não pode ser considerada se houver fraude ou simulação, o que deve ser comprovado, situação em que o Fisco, observado o devido processo legal, pode desconsiderar a fórmula jurídica utilizada pelas partes. Entretanto, meros interesses arrecadatórios não podem ser invocados para modificar o local da ocorrência do fato gerador, especialmente quando isso implique violação da Constituição, como acontece no contexto tratado neste estudo.
[1] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 22, nesse sentido, pontifica que “ ... as leis tributárias são leis que restringem, diretamente, a liberdade e a propriedade do cidadão, independentemente da sua vontade.” [2] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 5ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 168, nesse sentido, acentua: “É que a disciplina fundamental da tributação (ação privativamente estatal de tributar) atinge diretamente dois valores constitucionais básicos, como o patrimônio e as liberdades, cuja proteção eficaz se erige na própria razão de ser das constituições ocidentais modernas (que respondem aos postulados do constitucionalismo). Logo, toda a ação estatal voltada a esses valores terá a necessariamente que ser disciplinada capitularmente pelo texto constitucional.” [3] Entende-se, aqui, que os Municípios também compõem a Federação a partir do critério formal positivado na Constituição Federal, que estabelece, no art. 1º, que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, sendo que, no art. 18, corroborando aquela estipulação normativa do art. 1º, é estabelecido que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos precisos termos explicitamente estabelecidos na própria Constituição. Assim, do ponto de vista do Direito Constitucional positivo brasileiro e da realidade constitucional concreta do Brasil, não só a União, os Estados-membros e o Distrito Federal compõem a Federação, mas também a compõem os Municípios, já que tudo o que for dito fora disso estará contrariando a letra e o sistema concreto da Constituição brasileira. [4] Assim dispõe o art. 154, inciso I, da Constituição Federal, sobre a competência residual da União: “Art. 154. A União poderá instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;” [5] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 206/207. [6] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 207. [7] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 208. [8] NAVARRO COELHO, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 21/22, doutrinando sobre o tema afirma: “A norma, pois, não é a mesma coisa que a lei, entendida esta como a fórmula verbal de um legislador anônimo (costume) ou como fórmula escrita de um legislador institucional (lei, estrito senso). A norma é a expressão objetiva de uma prescrição formulada pelo legislador que não se confunde com aquilo que comumente chamamos de lei. Isto quer dizer que a norma, posto já se contenha nas leis, delas é extraída pela dedução lógica, função do conhecimento.” (Os destaques são do original). Na página 30 da mesma obra o autor assim explicita: “Para nós, com supedâneo na teoria da norma jurídica, é absolutamente necessário distinguir, isto sim, o plano da lei do plano da norma. A lei é um ente positivo. A norma é um ser lógico. Pode até haver coincidência entre lei e norma, caso raro. Normalmente a norma decorre de um conjunto de leis. Feito esse corte metodológico, é possível verificar que os problemas concernentes à existência, validade e vigência, de fato dizem respeito à lei como ente positivo, como ato legislativo. (...) No plano da lei basicamente importa saber se ela existe, se existe com validade e se, existindo com validade, está em vigor e, pois, apta a formar normas jurídicas ou cooperar para a formação delas. As questões de aplicabilidade, incidência e eficácia já se inserem noutra dimensão muito diversa. Inserem-se no plano da norma. Aplicável é a norma e não a lei. O que incide não é a lei. É o preceito da norma, se e quando ocorrente sua hipótese de incidência no mundo fático.” (Os destaques são do original). [9] Como acentua com propriedade NAVARRO COELHO, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 456, “Nem se duvide de que, numa norma de obrigação, o mais importante é o valor da prestação. Aí se condensa a meta optata da norma. O que se quer, mesmo, é o pagamento e a quitação.” (Os destaques em itálico são do original). [10] GUASTINI, Riccardo. Le Fonti del Diritto e L’Interpretazione. Milano: Giuffrè, 1993, p. 18, leciona, nesse sentido, que: “Malgrado l’uso comune non distingua, conviene tracciare una netta linea di demarcazione tra i testi normativi e il loro contenuto di significato, introducendo una terminologia ad hoc. (a) Diremo ‘disposizione’ ogni enunciato appartenente ad una fonte del diritto. (b) Diremo ‘norma’ (non la disposizione stessa, ma) il suo contenuto di senso, il suo significato, che è una variabile dipendente dell’interpretazione. In questo senso, la disposizione constituisce l’oggetto dell’attività interpretativa, la norma il suo risultato. La disposizione è un enunciato del linguaggio delle fonti soggetto ad interpretazione e ancora da interpretare. La norma è piuttosto una disposizione interpretata e, in tal modo, riformulata dall’interprete: essa è dunque un enunciato del linguaggio degli interpreti. La distinzione è resa necessaria dal fatto che tra le disposizioni e le norme no si dà corrispondenza biunivoca.” (Os destaques entre aspas simples e itálicos são do original). [11] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª ed.. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 30. [12] GUASTINI, Riccardo. Le Fonti del Diritto e L’Interpretazione. Milano: Giuffrè, 1993, pp. 25/25 assim descreve essa composição da norma: “Da questo punto de vista, ogni norma – o almeno la maggior parte delle norme – può essere analizzata in due componenti: (a) la pròtasi, che stabilisce una circostanza o (come spesso accade) un insieme di circostanze condizionanti; (b) l’apòdosi, che statuisce una consguenza giuridica. La conseguenza giridica in questione può essere: l’acquisizione o l’esercizio di una posizione giuridica, la validità di un atto, una sanzione, e via enumerando. La circostanza, il cui verificarsi è condizione di una qualche conseguenza giuridica, si dice ‘fattispecie’. (O destaque é do original). [13] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 319 disserta assim sobre o tema: “A fenomenologia do ‘fato gerador’ (hipótese de incidência, suporte fáctico, etc.) não é especificidade do Direito Tributário e nem do Direito Penal, pois toda e qualquer regra jurídica (independentemente de sua natureza tributária, civil, comercial, processual, constitucional, etc.) tem a mesma estrutura lógica: a hipótese de incidência (‘fato gerador’, suporte fáctico, etc.) e a regra (norma, preceito, regra de conduta) cuja incidência sobre a hipótese de incidência fica condicionada à realização desta hipótese de incidência.” (Os destaques ente aspas simples e em itálico são do original). [14] NAVARRO COELHO, Sacha Calmon.Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 454/456. [15] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, pp. 328/336. [16] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 48. [17] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 212, assim disserta sobre essa questão: “A interpretação conceitual das regras de competência é muito importante para compreender os limites do poder de tributar. Ela precisa, contudo, ser complementada por uma teoria jurídica da argumentação. Uma teoria jurídica da argumentação não se confunde com uma teoria racional da argumentação, que opta, entre os argumentos que podem ser utilizados, pelo mais racional, plausível ou sustentável. Uma teoria jurídica da argumentação procura fundamentar no próprio ordenamento jurídico a escolha entre os argumentos.” (Os itálicos são do original). [18] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 333, com sua autoridade científica característica, assim doutrina sobre o tema: “Os fatos (núcleos e elementos adjetivos) que realizam a hipótese de incidência, necessariamente, acontecem num determinado tempo e lugar, de modo que a realização da hipótese de incidência sempre está condicionada às coordenadas de tempo e às de lugar. O acontecimento do núcleo e elementos adjetivos somente terão realizado a hipótese de incidência se tiverem acontecido no tempo e no lugar predeterminados, implícita ou expressamente, pela regra jurídica.” [19] Recurso Extraordinário nº 390840, STF, Tribunal Pleno, Relator: Ministro Marco Aurélio, julgado em 09/11/2005, DJU de 15/08/2006, p. 25. [20] Recurso Extraordinário nº 116121-SP, STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Otávio Gallotti, Relator para o Acórdão Ministro Marco Aurélio, julgado em 11/10/2000, DJU de 25/05/200, p. 17. [21] O dispositivo legal citado está assim redigido: “Art. 435. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto.” O art. 1.087 do CCB/1916 tinha redação idêntica. [22] Sobre o tema da proposta assim dispõe o Código de Defesa do Consumidor: “Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.” [23] YAMASHITA, Douglas. Limites à Economia de Tributos: da Teoria Legal à Prática Jurisprudencial. In: YAMASUITA, Douglas. Planejamento Tributário à Luz da Jurisprudência. São Paulo: Lex Editora, 2007, p. 73. [24] ÁVILA, Humberto. Imposto sobre a Prestação de Serviços de Qualquer Natureza – ISS. Normas Constitucionais Aplicáveis. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Hipótese de Incidência, Base de Cálculo e Local da Prestação. Leasing Financeiro: Análise da Incidência. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v. 122, novembro de 2005, p. 126.
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